Christian M. Mwewa é professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Brasil e investigador-visitante no ICS-ULisboa
Alexandre Fernandez Vaz é professor na Universidade Federal de Santa Catarina/Brasil e investigador CNPq
Temos em curso uma pesquisa cujo objetivo é Explicitar, compreender e analisar relações sociais tensionadas e tangenciadas por questões étnicas nos contextos formativos da Educação infantil nos Centros de Educação Infantil na Cidade de Três Lagoas-MS-Brasil[1]. Esta pesquisa tem como objetivos específicos os seguintes:
(1) Mapear em periódicos Nacionais os pressupostos epistemológicos em que são pautados os artigos que tematizam as quetões das relações étnicas na Educação Infantil ou que abordam o tema das crianças;
(2) Analisar tensões da temática étnica nos documentos oficiais Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mais conhecida por LDB, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996; do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (2010);
(3) Investigar as práticas pedagógicas promotoras da diversidade frente à formação cultural do(a) educador(a).
Para isto, pretendemos conhecer e analisar as práticas educativas das professoras sobre a temática das relações étnicas. Foram feitas duas perguntas para todas as entrevistadas: (1) o que você entende por relações étnicas e raciais? (2) como a sua concepção de relações étnicas e raciais influenciam a sua prática pedagógica? A primeira etapa da pesquisa foi publicada sob o título de Mediações étnico-raciais no contexto da Educação Infantil em Três Lagoas/MS: um estudo de caso.
Uma possibilidade de ampliação e prosseguimento da pesquisa é envolver responsáveis familiares (o pai, a mãe, avós ou tios e tia, ou seja, as pessoas responsáveis pela tutela das crianças) e outros agentes que pertencem e convivem com as crianças nos contextos formativos como, por exemplo, as pessoas que trabalham na manutenção (limpeza, seguranças) da pré-escola/creche, entre outros. Aos familiares seria perguntado sobre como concebem a questão da diversidade étnica no contexto familiar e aos trabalhadores da escola pode-se perguntar se diferenciam as crianças no trato com elas em função das suas origens étnicas. Mais do que saber o que acontece, trata-se de observar como esses sujeitos representam a sua própria atuação.
Os dados até agora gerados e analisados permitem sugerir que ainda existem discrepâncias entre elementos legais, a realidade da educação infantil e a formação das educadoras atuantes nesse contexto educativo, refletidas nas falas das entrevistas realizadas com cinco educadoras e analisadas na segunda fase da pesquisa[2]. Esse tema é de suma importância para a construção de uma sociedade na qual o direito à educação é destituído das dimensões étnicas, de forma que o mesmo direito não é equânime para todos e pressupõe subalternizações.
Por outro lado, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998), por exemplo, a educação escolar apresenta-se como um objeto sociocultural e institucional que carrega consigo a responsabilidade pedagógica dos saberes e da cultura. As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004) evidenciam a necessidade da troca de conhecimentos, majoritariamente expressa entre negros e brancos, sendo ela essencial para que se construa uma relação de igualdade. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2010) preconizam que as instituições de educação infantil devem promover e assegurar o reconhecimento, a valorização, o respeito e também a interação das crianças com tudo o que tange à história e às culturas africana e afro-brasileira, como instrumento de combate ao racismo e à discriminação historicamente estruturada.
Porém, como sabemos, laurear os momentos infantis como possibilidades esperanços para o futuro é assumir a nossa incapacidade de resolver nossos problemas enquanto adultos e criados por nós, como por exemplo, os preconceitos que geram discriminações. As relações pautadas em tratamentos desiguais podem gerar danos irreparáveis à constituição das identidades das crianças, bem como comprometer a trajetória subjetiva e educacional, seu processo de formação e constituição enquanto sujeito social.
O mais de um século que nos separa da Lei Áurea não foi suficiente para superar as mazelas discriminatórias enraizadas na cultura brasileira por meio de quatro séculos de regime escravocrata. A luta pela equidade ainda se faz constante em respeito à promoção da igualdade dos negros e indígenas no Brasil que, como todas as outras etnias, apresentam-se como produtores e reprodutores da cultura nacional e não como a sociedade hierarquizada os concebe enquanto minoria étnica. A pouca representatividade nos meios de comunicação de massa e instâncias do poder público, por exemplo, pode inibir as possibilidades de projeção social dos negros e indígenas por parte das educadoras da educação infantil.
As crianças pequenas não brancas (os chamados negros, pardos e mestiços) sofrem ainda mais pelo silêncio, pelo não reconhecimento da sua atuação social e da igualdade de direitos, mas não de seus deveres. Essas crianças são ainda consideradas como inferiores, delegadas às piores condições para a sua formação, em especial, no contexto educativo da pequena infância.
Registra-se uma discrepância entre leis, diretrizes, documentos oficiais e a realidade dos contextos formativos da educação infantil, que vão ao encontro das assertivas apresentadas nos vários estudos de Fúlvia Rosemberg ao longo do tempo (1991, 1996, 1999, 2001, 2003, 2006, 2012 e 2017). Todos esses documentos legais anteriormente citados, expressam a necessidade de tratamentos de gênero, cultural, racial e social igualitários e, acima de tudo, equânimes. Mas quando nos deparamos com a realidade, essa colocação não corresponde à educação infantil. É nítido que nas leis se indicam ações para minimizar as mazelas sociais, históricas e culturais vivenciadas e experienciadas pelas populações negras, indígenas, pobres e femininas, entendidas como minorias (as populações não hegemônicas, vulnerabilizadas), porém os interesses continuam efêmeros, em meros “tapa buracos” que pouco diminuem o processo de preconceito e discriminação nos contextos formativos da educação infantil.
As análises das entrevistas mostram limites no posicionamento restrito das educadoras entrevistadas em relação à temática abordada. Pode-se dizer que o silêncio delas reedita a necessidade de uma formação docente na dimensão das relações étnicas. A inércia político-social manifestada na formação docente, legitima a permanência da situação mostrada nos estudos referenciados neste texto, ou seja, a realidade aqui explicitada, tanto nos documentos quanto nas práticas das entrevistadas, configura-se em uma reedição da realidade vivenciada no século passado, por exemplo, com variações pouco substanciais. Assim como, por exemplo, disse uma das entrevistadas ao ser questionada como as relações étnicas e raciais são reverberadas em sua prática pedagógica, a mesma respondeu: “[…] para mim, nada disso muda [referindo-se às Leis], pois todas as crianças são iguais” (Débora, Entrevista 02/09/2012).
As práticas pedagógicas podem promover a dignidade no desenvolvimento das crianças, não só de algumas. É a minoria étnica que possui uma estrutura definida de extrema qualidade para permanecer no poder, perpetuando a realidade pautada na desigualdade em relação à maioria étnica. A produção de conhecimento deve ser útil para implementar tecnologias sociais e interpelar a realidade apresentada. Portanto, “ao silêncio dos movimentos sociais sobre a educação da criança pequena se associa um intenso desconhecimento de nós, pesquisadores, sobre as relações raciais que se constroem no âmbito da creche e da pré-escola e da pequena infância”
É preciso microrrebeliões sistemáticas da maioria contra sua inferiorização e que assuma seu papel histórico, como seres humanos de direitos e deveres iguais; que se reconheça a educação infantil, de fato, como instância formativa e não como um depositário das crianças enquanto suas mães e pais vendem a força de trabalho; que o contexto educativo ainda seja um lugar de reflexão e não apenas de reprodução das desigualdades sociais.
Para saber mais sobre a pesquisa realizada até ao momento, pode consultar o artigo IMPLICAÇÕES ÉTNICAS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM TRÊS LAGOAS, MS
[1] O projeto se desenvolve no interior dos esforços do Núcleo de Esudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea, com sede na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e subsede, entre outras na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus Três Lagoas. O Núcleo tem apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
[2] Vide referência no final deste texto.
[3] ROSEMBERG, Fúlvia. Psicanálise e relações raciais. In: KON, Noemi Moritz, ABUD, Cristiane Curi e SILVA, Maria Lúcia da. O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. – 1 ed. – São Paulo: Perspectiva, 2017. P. 129-141. (cf. MWEWA e SOUZA, 2018, p. 498, NO PRELO).
Como citar este artigo: Mwewa, Christian M. & Vaz, Alexandre Fernandez (2018) Educação infantil: implicações étnicas e raciais. Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2018/04/05, 05 de abril (Acedido a xx/xx/xx)