Vanessa Cunha é investigadora Pós-Doc no ICS-ULisboa
Em 2016, a Fundação Francisco Manuel dos Santos desenvolveu uma série de iniciativas em torno da temática da natalidade, entre as quais um ciclo de debates ao longo do mês de maio, “mês da população”. Cada debate lançou um estimulante desafio aos oradores: pronunciarem-se sobre uma questão de fundo, tendo como mote uma interrogação. Calhou-me em sorte o quarto e último debate, Quem manda ter filhos? Homens e mulheres no momento da decisão. Calhou-me em sorte e tive sorte, pois acompanhei o interessante fluxo de pontos de vista que aí foram sendo apresentados e discutidos; e porque, apesar do estado avançado da discussão quando chegou a minha vez, ainda assim pude trazer elementos novos à reflexão.
Com efeito, se houve uma nota dominante no ciclo de debates, esta foi a perspetiva do protagonismo das mulheres nas profundas mudanças que têm vindo a ocorrer na natalidade, culminando na ideia de que no momento de decidir, são elas que mandam. Porém, o meu ponto de vista era outro. E ainda é, pelo que importa trazer para aqui a reflexão então feita.
Após largos anos a investigar os processos sociais que sustêm a baixa fecundidade na sociedade portuguesa (e não só), entendo que as decisões reprodutivas são negociadas e concertadas em casal e que esta é a regra e não a exceção. Se assim é, entendo também que os homens são corresponsáveis pelas decisões e pelos comportamentos que têm levado ao adiamento e à redução dos nascimentos. Daí não podemos persistir na atribuição às mulheres do exclusivo da queda da fecundidade. É um ónus pesado para as mulheres – pois são elas que estão na mira de uma sociedade que sistematicamente monitoriza, ajuíza, se não mesmo recrimina, a sua conduta reprodutiva. E é uma menorização do papel que os homens desempenham na esfera da reprodução conjugal. Como se eles fossem figurantes passivos, mas necessários, de uma epopeia feminina.
Convoco duas considerações para sustentar este ponto de vista:
A primeira consideração prende-se com o papel histórico que os homens tiveram na queda da natalidade e da fecundidade nas sociedades ocidentais, primeiro em França e depois no resto da Europa. Com efeito, entre meados do século XVIII e meados do século XX, o índice sintético de fecundidade em França passou de 5,5 para 2 filhos. E esta queda expressiva da fecundidade é atribuída à generalização do coito interrompido enquanto prática sistemática e intencional de controlo dos nascimentos, de tal forma que ficou conhecida na literatura por primeira revolução contracetiva. Neste contexto era, portanto, ao homem que competia zelar pelo interesse do casal em reduzir a descendência procurando evitar, em cada ato sexual, uma conceção não desejada. Segundo estimaram os historiadores Jean-Pierre Bardet e Jacques Dupâquier, o alcance desta prática contracetiva dos casais na queda da fecundidade foi ainda mais profundo do que o da pílula: através do coito interrompido, a fecundidade francesa caiu 58% entre 1740 e 1940; com a pílula e o DIU, a queda da fecundidade situou-se em 38% entre 1964 e 1984.
A segunda revolução contracetiva, que ocorreu com a generalização dos anticoncecionais femininos, levou à transferência da vigilância contracetiva dos homens para as mulheres. Tal não implica, porém, que os homens se tenham alheado desta esfera de decisão. Até porque, se estes novos métodos constituíram em primeira linha uma conquista para as mulheres – e em particular para as solteiras na medida em que passaram a gozar de uma sexualidade pré-matrimonial (quase) sem risco de conceção -, no quadro da vida conjugal estes métodos também foram muito bem-vindos. Vieram permitir aos casais que não queriam ter filhos reduzir substancialmente o risco, e aos casais que queriam ter filhos uma verdadeira programação do projeto parental.
Deste ponto de vista, a contraceção feminina no quadro da vida em casal é entendida, por mulheres e homens, como estando ao serviço dos interesses do casal. E importa fazer aqui uma pequena nota adicional. Em Portugal, a generalização da pílula foi tardia, lenta e socialmente desigual; e o recurso, por parte dos casais, ao coito interrompido e ao preservativo masculino continuava a ser expressivo na década de 80, como revelaram o 1º Inquérito do INE à Fecundidade (1980) e o Inquérito Nacional de Saúde (1987). Foram, portanto, homens e mulheres, e a ação combinada de métodos contracetivos masculinos e femininos, que levou à queda acentuada da fecundidade portuguesa a partir dos anos 70.
A segunda consideração prende-se com mudanças de fundo na vida familiar. Ora, se viver em casal continua a ser a forma predominante de organização doméstica e familiar na sociedade portuguesa, a experiência, os significados e as expetativas colocadas na vida a dois são hoje profundamente diferentes dos do passado. A crescente desinstitucionalização da conjugalidade desde os anos 70 – na qual se inscrevem as tendências de aumento do divórcio, das uniões de facto e dos nascimentos fora do casamento – é apenas a faceta mais visível dessas mudanças na vida a dois. Simplificando, para não me alongar no argumento, se no passado o casamento era uma instituição vitalícia baseava numa economia doméstica de sobrevivência da qual, não raramente, estava ausente o sentimento amoroso; hoje em dia, a vida a dois não só pressupõe justamente esse sentimento amoroso, como se transformou num contrato por tempo indeterminado que tende a cessar se e quando esse princípio fundador deixa de estar presente.
O aumento das recomposições conjugais e familiares, que acompanham a evolução do próprio divórcio, é, portanto, o outro lado da mesma moeda, pois reflete a incessante busca de realização individual e afetiva através da vida a dois. As relações de género também se modificaram substancialmente a partir do 25 de Abril, em grande medida sob o impulso legislativo que aboliu na letra da lei as relações assimétricas e hierárquicas entre cônjuges e que consagrou a igualdade entre homens e mulheres; medidas essas que promoveram a gradual democratização e indiferenciação dos papéis de género na vida familiar. Se as mulheres conquistaram há décadas o direito à esfera pública; os homens têm vindo a conquistar, a pouco-e-pouco, o direito à esfera privada e aos seus privilégios emocionais (até recentemente reservados às mães), através da construção de uma relação pai-filho/a próxima, íntima e cuidadora desde o primeiro dia. Contudo, é consensual que persistem desigualdades de género na família e no mercado de trabalho e que estas continuam a pesar sobretudo na vida das mulheres, inclusivamente condicionando as suas decisões reprodutivas.
Mas o que tem sido menos debatido, é que os homens também querem ter filhos, também têm os seus ideais e as suas agendas de fecundidade, também refletem sobre as condições que consideram mínimas ou ótimas para o exercício de uma paternidade responsável, e também tomam decisões reprodutivas condicionadas por um mercado de trabalho que ainda não reconhece verdadeiramente o direito e o dever dos homens à conciliação família-trabalho alimentando. Por isso mesmo, a persistência das desigualdades de género nas esferas pública e privada.
Os projetos de paternidade dos homens não se anulam nem se confinam, então, aos projetos de maternidade das suas mulheres, apesar de ter filhos continuar a fazer sentido, para eles e elas, no quadro de uma vida conjugal afetivamente gratificante e onde o princípio da confiança mútua (nomeadamente em termos da vigilância contracetiva) é uma premissa essencial. Como tal, no momento de decidir, os casais procuram concertar os interesses de cada um. E de facto assim é. Num inquérito do Instituto de Ciências Sociais da ULisboa, realizado em Portugal em 2009/2010, onde se mapearam as trajetórias reprodutivas da geração que nasceu na primeira metade dos anos 70, os homens e as e mulheres que não pretendiam ter filhos ou mais filhos declararam que se tratou de uma decisão do casal. Por conseguinte, as descendências atuais de 1 ou 2 filhos parecem ser compagináveis com decisões negociadas que vão no sentido de privilegiar o consenso mínimo entre as duas partes: entre 3 e 2 fica-se por 2; entre 2 e 1, fica-se por 1.
Um apontamento final. É tentador considerar que, no paradigma contracetivo atual, são as mulheres que mandam ter e mandam não ter filhos, colocando-lhes nos ombros o peso das mudanças que têm vindo a ocorrer na fecundidade. É tentador, mas inexato. E é uma perspetiva que alimenta políticas públicas que dirigem todas as suas baterias para as mulheres, como se os homens não fossem parte ativa e interessada e não vissem as suas decisões reprodutivas também elas condicionadas. E ao fazê-lo, incorrem no risco de não estar a acautelar todas as partes, por vezes até enfraquecendo conquistas recentes a nível da igualdade de género, o que não é uma boa política quando chega a hora de o casal decidir.
Como citar este artigo: Cunha, Vanessa (2018) Homens e decisões reprodutivas: o elemento invisível da equação. Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2018/05/03 03 de Maio (Acedido a xx/xx/xx)