Verónica Policarpo, Instituto de Ciências Sociais, ULisboa
Miguel Barbosa, Faculdade de Medicina, ULisboa
Ricardo R. Santos, Centro de Bioética da Faculdade de Medicina, ULisboa
Organizadores da conferência
Animais-companheiros nas vidas dos humanos: desafios sociais e éticos
Em 1999, aquele que viria a ser laureado, quatro anos mais tarde, com o prémio Nobel da Literatura, J. M. Coetzee, publicou The Lives of Animals. A obra integra dois capítulos de Coetzee, “Os filósofos e os animais” e “Os poetas e os animais”, que foram inicialmente apresentados pelo autor em Princeton, em 1997, enquanto orador convidado das Tanner Lectures on Human Values. Nessa obra metaficcional, a personagem-escritora Elizabeth Costello reflete sobre os direitos dos animais e o trabalho da literatura e da filosofia sobre o modo como os olhamos, como os construímos enquanto entidades que resultam da existência humana, mais do que como entidades em si mesmas, com uma existência própria e autónoma.
A reflexão de Coetzee constitui não só um exemplo inspirador de como trazer para o pensamento académico a criatividade inspirada da literatura, mas também sobre como iluminar a forma como os humanos tendem a definir e a determinar a existência dos não-humanos. As questões que Elizabeth Costello coloca são incómodas, deixam a sua audiência desconfortável. Por exemplo (e assim ecoando a de a outros autores como Isaac Bashevis Singer[1]), compara o extermínio dos animais de produção aos campos de extermínio do Holocausto.
A obra convida-nos a questionar a relação que temos com os animais. Em vez de “será que temos alguma coisa em comum com eles – razão, consciência de si, alma…”; “será que somos diferentes, e em quê?”; a pergunta central a fazer é: até que ponto conseguimos partilhar o Ser de um Outro? Até que ponto somos capazes de uma empatia que nos permita descentrarmo-nos do nosso próprio mundo, para nos centrarmos no de um Outro? Somos ou não capazes desta “imaginação solidária”? Existem ou não limites para ela? E o que nos diz a relação que temos com os animais sobre o modo como nos vemos a nós próprios, como humanos? E que papel tem a constante criação, e manutenção, de uma barreira inter-espécies nessa definição do que somos (e queremos ser)?
As ciências sociais, entre as quais a Sociologia, a Antropologia, a História ou a Geografia, têm-se focado desde a sua origem na explicação dos modos de vida dos humanos, na sua diversidade. Como essa vida humana se constrói em interação comunicativa, estruturada por pertenças variadas e que se cruzam entre si, como o género, a idade e a geração, os espaços que se habitam, as comunidades de vários tipos (políticas, cívicas, espirituais) com que nos identificamos, ou mesmo em que participamos, os trabalhos que se fazem e as profissões que se desenvolvem, as competências que se aprendem, o lugar que se ocupa na estrutura socioeconómica. Relações sociais que são também relações de poder, atravessadas por desigualdades variadas e frequentemente cumulativas.
As ciências sociais, ocupadas que estavam a identificar as origens sociais dos fenómenos, e a chamar a atenção para a importância de os considerar no seu contexto socio-histórico, só a partir das últimas décadas do século XX começaram a dar mais atenção à importância da relação dos humanos com o mundo natural no qual se inserem. Pela mão das questões relativas à sustentabilidade, e aos desafios colocados pela exploração humana dos recursos naturais, que questiona a própria possibilidade de um futuro num planeta viável e vivível, o não-humano começou a ser integrado como objeto legítimo, e indispensável, de estudo.
Os animais chegam a este debate, por um lado, por via da necessidade de pensar modos sustentáveis (e saudáveis) de alimentar a população. Por outro lado, por via da pressão de vários grupos e forças sociais (entre os quais os próprios grupos de defesa dos direitos do animal, mas também a própria comunidade científica, que em 2012 assinou a Declaração de Cambridge sobre Consciência Animal), pela necessidade de assegurar o seu bem-estar, evitando o sofrimento. Princípios que, aliás, estiveram na agenda da primeira edição, em Abril de 2018, da International Animal Welfare Summit.
No entanto, é por via de outros saberes, como a Literatura, Filosofia e Ética, mas também, no campo das ciências sociais, dos estudos feministas, da antropologia e da geografia humana, que os animais entram no pensamento social como seres com uma existência própria, merecedora da nossa curiosa atenção. Principalmente a partir dos finais dos anos 90 e início dos anos 2000, a chamada animal turn foi-se consolidando no pensamento sobre as relações entre os humanos e o mundo à sua volta.
Nasce toda uma nova área transdisciplinar, os Animal Studies, onde os animais não-humanos são considerados atores de pleno direito, como ativos na co-produção de um mundo comum com os humanos e, nesse sentido, indispensáveis à compreensão dos próprios humanos: as suas relações sociais e os seus modos de vida. Em suma, a animal turn permitiu ganhar consciência de que, para falar de relações sociais, para as explicar, não podemos excluir os animais não-humanos.
Esta viragem epistemológica implica, desde logo, uma importante tarefa: a de tornar visíveis esses animais na sua diversidade, na sua existência específica, pois os animais desde sempre comungaram, com os humanos, de espaços e tempos, construindo relações cooperativas de diversos tipos, dependendo das espécies e das condições de vida: comuns, de uns, de outros. Tal como no passado, no mundo contemporâneo os animais são omnipresentes na nossa vida.
No entanto, existe certamente uma hierarquia – não só da (in)visibilidade, como do estatuto que, por essa e outras vias, os animais ocupam. Alguns animais, sendo totalmente omnipresentes, são praticamente invisíveis; é o caso dos animais de produção, para consumo de carne, ou de outros produtos de origem animal, como o leite, queijo, ou outros derivados. Também são quase invisíveis os animais de consumo para entretenimento: os que vivem em cativeiro e fora do seu habitat, nos circos, nos jardins zoológicos, que são usados para espetáculos como as touradas, ou para atividades como a caça.
Em contraste, alguns animais são altamente visíveis: aqueles com quem desenvolvemos uma relação pessoal e particular, que olhamos como indivíduos. São os que habitam connosco nas nossas casas, partilham um espaço comum, influenciam as nossas decisões, construímos com eles relações íntimas, baseadas em múltiplas práticas afetivas. Estes pets, ou animais de companhia, constroem com os seus donos relações de gratificação mútua, que podem ser muito fortes.
Também aqui existem hierarquias de visibilidade e de estatuto. Enquanto os cães e os gatos são particularmente considerados como indivíduos próximos dos humanos, parecendo como que esbater a barreira inter-espécies; cobras, lagartos, tartarugas, aves, ratos ou peixes ocupam um lugar bem menos privilegiado na hierarquia e no estatuto que os humanos lhes conferem, relembrando assim a existência da barreira humano/não-humano, também no que aos pets diz respeito. Na sociedade portuguesa, os pets são maioritariamente cães e gatos, e falam-nos da grande importância que os afetos ganharam na construção da vida íntima e pessoal, e de como esta atravessa a barreira inter-espécies, podendo mesmo ser um veículo para o desenvolvimento de atitudes mais universalistas, de uma empatia que permita a passagem da consideração do animal-indivíduo à espécie como um todo.
Desde logo, os animais de companhia são importantes atores no desenvolvimento das crianças, assim como no envelhecimento e acompanhamento de questões de saúde física e mental dos humanos. E mesmo quando não se vive com um animal, os nossos dias serão em algum momento pontuados por encontros de diversos tipos com estes seres de outras espécies, de uma forma para nós mais ou menos consciente.
Seja o pombo que sujou o nosso carro; o pardal que cruza, rápido, o céu à nossa frente; as andorinhas que vemos voltar todas as primaveras; os animais que estarão, para a grande maioria, no prato e na mesa, para consumo; ou os animais errantes, que nascem e habitam nas ruas. Como na fotografia que acompanha este artigo. Uma jovem mãe e o seu bebé encontram-se com um cão, todos em passeio pelo parque lisboeta de Monsanto. Um encontro assinalado por um cumprimento específico: uma lambedela, que ilustra também a importância da corporalidade na relação entre humanos e animais. E onde ressalta ainda a importância dos afetos e emoções, na nossa relação com os animais: neste caso específico, ausência de medo, por um lado; e alegria, por outro.
É sobre estas e outras questões relacionadas com a vida dos humanos com os animais que a conferência Animais-companheiros nas vidas dos humanos: desafios sociais e éticos, pretende lançar o debate, nos dias 8 e 9 de Novembro deste ano. A conferência vem enquadrar-se num projeto mais alargado de construção desta nova área de estudos, no ICS-ULisboa, da qual faz parte, entre outras iniciativas, o novo grupo de trabalho e leitura Animal Wonder – Animal Studies and Human-Animal Relations@ICS-ULisboa. A expressão animais-companheiros pretende colocar o debate a partir da discussão das espécies-companheiras, de que nos fala Donna Haraway, em que animais humanos e não-humanos co-constroem, em parceria, embora cada um à sua maneira, um mundo comum, feito de práticas e de afetos.
Pretende-se que o debate seja interdisciplinar, informado por múltiplas perspetivas teóricas, mas abordando sempre o contributo específico das ciências sociais para pensar este contínuo humano/não-humano, as suas implicações para o questionamento das barreiras inter-espécies e, consequentemente, para as relações sociais – entendidas não exclusivamente como relações entre seres humanos, mas também destes com o mundo que os rodeia, e neste caso específico, os animais. Eixos estratégicos nesta discussão, para as ciências sociais, são a importância dos animais nas famílias e na vida pessoal; pensar o território e a cidade de um modo que inclua os animais; as questões das desigualdades, dos direitos e das políticas públicas; ou ainda as questões associadas à saúde e ao envelhecimento. São questões transversais aos dois grupos de investigação do ICS-ULisboa que apoiam e organizam esta conferência: LIFE – Percursos de Vida, Desigualdade e Solidariedade: Práticas e Políticas; e ATS – Ambiente, Território e Sociedade.
Retomando o início deste texto, acompanhamos Coetzee, ou melhor, o seu alter-ego Elizabeth Costello, quando em “Os poetas e os animais” nos diz, a propósito de dois poemas de Ted Hughes (O Jaguar e Um segundo olhar sobre o jaguar): “É deste tipo de poesia que vos quero falar hoje: uma poesia que não tenta encontrar uma ideia no animal, que não é sobre o animal, mas sim, o registo de um compromisso com ele.”. E assim afirmamos: é deste tipo de ciência social que vos queremos falar hoje. E de que iremos falar na conferência Animais-companheiros e seus humanos: desafios sociais e éticos. Uma ciência social que possa ser feita, não sobre os animais, não através deles (usando-os como recursos, meios, ou “objetos” de estudo exóticos), mas sim com os animais: o registo de um compromisso com essas outras espécies que têm co-construído, connosco, o mundo humano. O estudo das relações sociais não pode mais passar sem incluir estes atores não-humanos.
[1] No seu conto “The Letter Writer”, o escritor judeu e laureado com o prémio Nobel da Literatura em 1978, Isaac Bashevis Singer, escreveu: “In relation to them, all people are Nazis; for the animals it is an eternal Treblinka.” Esta frase seria usada por Charles Patterson, como epígrafe no seu livro Eternal Treblinka: our Treatment of Animals and the Holocaust, em que compara as atitudes e métodos de extermínio usados no Holocausto aos praticados no mundo atual sobre os animais.
Como citar este artigo: Policarpo, Verónica; Barbosa, Miguel e Santos, Ricardo (2018) Vidas de Humanos com Animais: que relevância nas ciências sociais?. Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2018/05/17 17 de Maio (Acedido a xx/xx/xx)