Vitor Sérgio Ferreira é investigador auxiliar e responsável científico pelo Doutoramento em Sociologia no ICS-ULisboa.
No passado dia 5 de Dezembro de 2018 fui convidado a apresentar algumas considerações acerca da relação orientador-orientando nos Seminários RRI Responsible Research & Innovation, uma iniciativa mensal do ICS-ULisboa. Propus então falar acerca de uma realidade que me tem interpelado ultimamente, considerando a minha experiência de professor e orientador no programa interuniversitário de doutoramento em Sociologia que o ICS-ULisboa integra, o OpenSoc.
A oferta pós-graduada ao nível do 3º ciclo de estudos no Ensino Superior, nomeadamente na área dos doutoramentos em Sociologia, tem sido preenchida por novos perfis de procura relativamente aos perfis habituais no passado, com estudantes com diferentes níveis de preparação e que ingressam num doutoramento com objetivos diferentes:
– Estudantes-trabalhadores, licenciados e/ou mestrados antes da entrada em vigor do processo de Bolonha, já há algum tempo distantes da vida académica e da prática de investigação, e que procuram uma formação pós-graduada como forma de valorização pessoal ou de progressão de profissional fora da academia;
– Estudantes recém-mestres com pouca prática concreta de pesquisa científica, e com conhecimentos teórico-metodológicos de base menos consolidados e concretizados em práticas de investigação hands-on relativamente aos estudantes licenciados e/ou mestres pré-Bolonha, estes com percursos formativos mais longos e que terminavam com a defesa de monografias ou dissertações. Uma situação que os diferencia dos atuais recém-mestres, tendo em conta que as dissertações de licenciatura desapareceram com a entrada em vigor do processo de Bolonha, e as atuais dissertações de mestrado muitas vezes não exigem o desenvolvimento de uma pesquisa científica de fundo, podendo ser relatórios de estágio, revisões críticas de literatura, projetos de investigação, etc.;
– Estudantes com formações de licenciatura e/ou mestrado frequentemente pouco alinhadas com a área formativa que pretendem no Doutoramento, muitas vezes provenientes de áreas do conhecimento fora das ciências sociais.
Em suma, temos cada vez mais doutorandos pouco familiarizados quer com as exigências teórico-metodológicas implicadas num processo de investigação científica em ciências sociais, quer com os próprios requisitos formais e de conteúdo inovador envolvidos numa tese de doutoramento nestas áreas do conhecimento, na medida em que muitos deles nunca passaram por essa experiência (estudantes pós-Bolonha) ou já desenvolveram as suas teses de licenciatura ou de mestrado há muito tempo atrás (estudantes pré-Bolonha).
Ora, a realidade destes novos públicos em programas doutorais em ciências sociais implicará reconfigurações nas relações entre orientador(es) e estudantes de doutoramento? Haverão novas expectativas a ser geridas no desempenho dos papéis de orientador e de orientando?
Existe no Guia do Estudante do ICS-ULisboa algumas recomendações quanto ao que se entende serem as “boas práticas” na relação entre orientadores-orientandos: o que se espera e não se espera do orientador, o que se espera do co-orientador, e o que se espera do orientando. Espera-se deste, nomeadamente, que “assuma a responsabilidade das suas próprias atividades de pesquisa e aprendizagem”.
Sem dúvida, o doutoramento é uma prova de autonomia do sujeito que a faz enquanto investigador. Mas se outrora era a derradeira prova dos poucos que integravam a carreira académica, hoje é a prova inaugural para os muitos que ambicionam entrar nessa carreira. E o grau de autonomia na prática científica destes, à entrada num programa doutoral, não será decerto o mesmo que tinham aqueles que serão os seus orientadores, quando decidiram fazer o seu próprio doutoramento, integrados numa carreira académica a tempo inteiro e já com um largo percurso de experiência científica.
Neste contexto, perante os novos perfis de estudantes de doutoramento atrás pincelados, parece-me que a atividade de orientação é chamada a assumir mais e maiores responsabilidades do que no passado, responsabilidades que por vezes passam desapercebidas aos que há mais tempo andam pelos corredores da academia. Avanço, assim, com a hipótese de que talvez estejamos perante uma mudança de paradigma nas relações de orientação.
Os orientadores mais velhos estavam habituados a orientandos mais autónomos, doutorandos que tinham uma preparação de quatro a cinco anos de licenciatura, que já haviam passado pela elaboração de dissertações ou de provas de aptidão pedagógica, estando, portanto, familiarizados com o que é pretendido de uma tese. Frequentemente, eram também orientandos que tinham experiência na condução de projetos de pesquisa nas instituições em que desenvolviam as suas atividades de docência e/ou de investigação.
Este foi o meu caso, ou o caso do meu próprio orientador. Em grande medida, o seu papel de orientação era regido por uma ética de validação do trabalho que ia sendo feito pelo doutorando, quer em termos de etapas da pesquisa, quer em termos de discussão teórica, de análise de dados e da própria escrita da tese. Partia-se para um doutoramento com um projeto claro e consolidado, as reuniões faziam-se a propósito de dúvidas que pontuavam o processo de pesquisa empírica e ao ritmo de cada capítulo ou lote de capítulos escritos, donde muitas vezes os orientandos saíam com pontuação e gralhas corrigidas.
Hoje isso é mais difícil de acontecer, e a minha experiência pessoal e de outros colegas indica que o trabalho de orientação tem que ir muito mais além. Há lacunas que os novos estudantes frequentemente trazem consigo que, mesmo depois de um primeiro ano de formação intensiva, dificilmente são compensadas se não houver um sério compromisso por parte dos orientadores com o trabalho implicado nos doutoramentos dos orientandos. Um compromisso que passa pela maior disponibilidade de tempo de tutoria, de investimento numa verdadeira relação pedagógica de mútua aprendizagem.
Para levar um doutoramento a bom porto, com a qualidade científica desejada, os orientadores, cada vez mais, terão de se comprometer com uma efetiva ética de co-laboração em todas as fases e escolhas que se fazem na elaboração de uma tese de doutoramento: desde o desenho do projeto à seleção e revisão de literatura, à formulação de ideias exploratórias e de hipóteses de trabalho, ao desenho metodológico e acompanhamento próximo do trabalho de campo, de análise de dados, de formulação da estrutura da tese e do próprio processo de escrita.
O que chamo de ética de co-laboração implica ver a relação de orientação como um trabalho colaborativo. Não no sentido de produzir um resultado coletivo – uma tese de doutoramento deve sempre traduzir o ponto de vista do seu autor, o doutorando, o qual é posto à prova científica e entre pares –, mas de promover um processo de troca e partilha coletiva ao longo da produção da tese de doutoramento, processo esse que pode tomar diversas formas de suporte ao doutorando na concretização do seu projeto de investigação.
No meu caso, para além de incentivar a participação ativa de estudantes de doutoramento nos seminários dos grupos de investigação de que fazem parte, tento o mais possível promover encontros regulares de orientação coletiva com os vários doutorandos que supervisiono, proporcionando que os trabalhos de cada um sejam discutidos com todos e entre todos. Mesmo com temas, objetos, métodos diferentes, e em diferentes fases do processo de elaboração da tese, todos co-laboram num sistema de aprendizagem recíproca, onde se trocam saberes e experiências. Esta dinâmica tem ainda a virtude de mitigar a famigerada solidão do doutorando.
Como escreveu Howard S. Becker no seu livro Truques da Escrita – que vivamente recomendo a todos que estão em processo de elaboração de uma tese de doutoramento -, também eu “estava me tornando professor particular e terapeuta de tanta gente que julguei que seria mais prático tratar de todas essas pessoas juntas” (p. 13). Experiência que tem sido globalmente positiva e que tem enriquecido todos os envolvidos, eu incluído.
Como citar este artigo: Ferreira, Vítor Sérgio (2019) Da ética de validação à ética de co-laboração: uma mudança de paradigma nas relações de orientação? Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2019/01/10 10 de janeiro (Acedido a xx/xx/xx)