Sara Merlini, Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (ISCSP / ULisboa)
O Verão passado foi vivido intensamente cá em casa. A fase do doutoramento tinha acabado e os tempos turbulentos também. Antes disso, disseram-me que tínhamos sobrevivido a desafios “pouco recomendados” para a nossa idade… O que teríamos nós prevenido e quantos excessos cometemos? A palavra sobre-vivência foi a única que se encaixou na minha descrição de tudo, porque (só) viver implicaria um tipo de usufruto que, de certo modo, nos esteve vedado. Ou melhor, que foi sendo vivido por nós de uma forma muito peculiar. Esses horizontes de expectativa e espaços da experiência, sempre particulares e moldados em função de temporalidades e exigências, amadurecem-nos, constrangem-nos e formatam-nos, às vezes ao ponto da cegueira…
Quando, à terceira tentativa, eu consegui finalmente a oportunidade da bolsa de doutoramento em 2015, a minha filha tinha um mês de vida. Costumo às vezes brincar dizendo: “Tive gémeos, só que o segundo levou quatro anos para sair!” E nem houve problema com o encurtamento da licença, a senhora da segurança social que me atendeu disse logo para não me preocupar, afinal “o mínimo obrigatório eram só as 6 semanas”. Os meus 30 anos, acabados de fazer, motivavam-me perante tal desafio: “Eu consigo… Estou preparada! Pelo menos tento…”.
O que eu não sabia, nem podia antecipar, era que dois anos depois, iria acumular também a posição de principal cuidadora da minha mãe, a quem diagnosticaram uma neoplasia dos ovários, no estádio 4. Quando me lembro daquele momento, em que soube desse facto, continua a parecer-me surreal. Sem pré-aviso, no corredor do internamento do Hospital, o médico disse-me que lhe restavam 5 meses de vida. Não há imagens, sons ou palavras suficientes e adequadas para expressar o que senti e pensei naquela sexta-feira, dia 14 de julho de 2017, à hora do almoço. Nesse dia quis mesmo desistir de tudo e viver os cinco meses só a cumprir os desejos e sonhos da minha mãe. Restituir-lhe o que de vida ela pudesse (ainda) ter. Afinal quanto tempo teria para o fazer? E o que ainda não tinha aprendido com ela? O que é que ainda faltava viver e con/versar?
Foi em agosto que a levei para nossa casa e troquei de lugar com ela como cuidadora. O meu maior apoio nos cuidados à minha filha, a minha fonte vital de suporte afetivo, a pessoa com quem (também) mais discutia. Felizmente pude contar com o apoio de uma rede de pessoas que se souberam aproximar e cuidar comigo. Aprendi a importância de pedir ajuda e de confiar cuidados. Não foram 11 meses fáceis. Conseguimos assegurar-lhe qualidade de vida, mas foram tempos complexos, exigentes e muito stressantes.
O mais difícil para mim foi aquele pedido final, da doação do corpo à medicina. Este acordo, apesar de assinado por ela desde 2011 no Instituto de Medicina Legal, só pode ser cumprido por quem fica. No nosso caso implicou não fazer velório, organizar uma homenagem à sua vida em julho de 2018 e adiarmos a cremação por 16 meses. Sobre-vivemos.
Quando acabou, especialmente quando fomos de férias, só me conseguia relembrar dos factos como se relembra um pesadelo e não como uma dura realidade. Foram episódios e momentos. Experiências que nos arrastaram como um grande furacão e os seus rodopios. Às vezes ainda sonho que foi tudo mentira e que ela me vai ligar de manhã a dizer que vem cá ter a casa hoje à tarde, depois de dar as aulas de Ballet na escola de Benfica… Ela gostava muito de espirais e ainda mais de dançar… queria que toda a gente dançasse a vida! E deixou-me um relógio que diz isso mesmo “vive”:
O estoicismo ajudou-me. E aquela exigência final do doutoramento quase me poupou ao sofrimento de uma morte tão fundamental, servindo como uma espécie de porto de abrigo para sublimações e emoções fortes. Só que o luto nunca se vai embora. Esta ideia tão fugaz, este estado de “lutar” vai, efetivamente, assumindo diferentes contornos e significados. Lutamos para quê? Por quem? Com quem? E contra o quê? Precisamos desse modo agonístico, desse estado permanente? Nesse aspeto, é curiosa também a expressão “período de nojo”, que só conheci muito depois do que vivi. De quanta aversão precisamos para superar o insuperável? Haverá uma distância temporal suficiente ou necessária? Como nos preparamos para sobre/viver as dificuldades? E se a Sara de 2015 soubesse como iriam ser estes quatro anos, teria feito, vivido ou mesmo pensado de modo diferente? Quereria saber?
Os meus problemas não serão diferentes ou piores do que outros. Os meus olhos sociológicos têm visto demasiadas desigualdades, lógicas e processos de dominação. Nesta breve década vivida como investigadora, ouvi e perguntei o suficiente para saber que me encontro (e que me encontrava) numa posição privilegiada para enfrentar tudo o que me aconteceu. Entre muitas outras coisas, tinha saúde, capacidade, capitais sociais e culturais para lidar com os meus problemas. Tinha pessoas preocupadas com o que me acontecia. E talvez (ou exatamente) por isso até ao fatídico dia 11 de Março de 2020 – o da declaração de pandemia pela OMS – acreditava, realmente, que o pior na minha vida já tinha passado e que no futuro nada poderia ser tão difícil assim.
Este desabafo já vai longo. É um convite para refletirmos conjuntamente sobre a vida e sobre o que podemos (ou queremos) mesmo saber, sempre de modo responsável e privilegiando a abordagem crítica e histórica dos factos. É, aliás, a experiência e o saber acumulado pela comunidade científica e por quem melhor sabe, que nos têm relembrado da reincidência dos surtos pandémicos de larga escala e das melhores condições que temos agora para ultrapassar esta crise sanitária.
Do que acompanhei até esta data, em termos formais e naquilo que este período nos permite exprimir, partilhar e escoar, encontrei três reações principais e as suas respetivas narrativas coletivas. Não serão, certamente, estanques. Há (e haverão) variações, reconfigurações e as r/evoluções necessárias no contar desta nova década, dependendo de onde estamos, estávamos, do que vemos, vimos ou de como nos distinguimos e demarcámos. Percebo estas três formas que identifiquei (em jeito de Análise Crítica de Narrativas) como modos de prevenir um futuro equilíbrio, de cristalizar o passado e de calibrar e assegurar os impactos no presente.
Na versão conspirativa, acompanhada frequentemente de identificações nacionalistas, emergem cenários distópicos e paralelismos com a ficção científica. Culpabilizações intolerantes, respostas rápidas e claras, verdades únicas e pouco espaço para o diálogo. Só crença. Só há uma razão para isto ter acontecido, temos culpados, vilões, testemunhas e até heróis. Nessa estória, não resta nenhuma dúvida sobre o que tem de ser feito, sobre o que é o certo e o errado. Sobre o bem e sobre o mal (ou sobre o terrível, que talvez seja melhor nem falar, só prender).
Temos também a versão esperançosa, quase burguesa e tão bem ilustrada pelos anúncios de supermercados e bancos. Amplamente promovida pelas escolas e redes sociais. Precisamos mesmo dela. Exigimos acreditar nela para dar continuidade à construção (vital), seja na vertente mais clássica ou neoliberal desse capital. Precisamos também dessas ideias, que no futuro “vamos ficar todos bem”, que a “mãe natureza” está melhor “sem nós” ou mesmo que o nosso “sacrifício” é para o bem comum da civilização. Justificar o confinamento, a necessidade urgente de ficar em casa (se a tivermos e o pudermos fazer) e de como neste país nos portamos assim tão bem. Nesta variante emergem as mais interessantes e instantâneas utopias. Desde os convites à nova luta do proletariado até ao anúncio convicto do fim do antropoceno e do consumismo. Podemos fazer tanta coisa a partir do sofá!
Por último, temos a versão “negacionista”, indiferente ou, por vezes, quase depressiva. Aquela que nos relembra da tristeza do que estamos a viver, que o pior ainda está para vir, que estamos muito mal, que vamos ficar pior ou que seremos os próximos. Que a economia é demasiado importante, que já estragámos tudo e que não podemos “brincar” às casinhas por muito tempo. Ou que os bandidos vão aproveitar-se disto tudo. Que não vamos ficar parados à espera que chova. Nesta narrativa, sofrida, apela-se frequentemente à sensatez pragmática. Da que nos relembra da provável contaminação e da inevitabilidade da morte. Da doença e da sobre-vivência. Dessa necessidade de viver como podemos e de levar a vida como de “costume”.
As “vistas” da minha casa – este retângulo hipotecado e plantado no Bairro Alto do Moinho em que habito com a minha filha e o meu companheiro – são muito diferentes das que tenho visto passar na televisão ou nas redes sociais. Mostro mais duas fotografias, tiradas da minha varanda, para retratar tanto a floresta de Monsanto como o tal Moinho. São horizontes ladeados de prédios muito longínquos. Neste sítio, onde vivo, as pessoas não agem todas da mesma maneira. Nem poderiam. Mas reagem muito mais desse terceiro modo, da vida sobre/vivida como um fado. E o confronto diário com essas outras realidades pode por vezes ampliar, retrair ou esbater alguns horizontes…
No primeiro dia, a 14 de março, até batemos palmas à porta da rua, juntamente com a minha vizinha da porta da frente e os ecos que se ouviam… Para quê, se ninguém ouvia? Às vezes de manhã, também se ouve um galo e papagaios a sobrevoar. Pergunto, em que ecos vivemos? E o que é que eles nos devolvem sobre a vida? Os anos 2020, esta nova e ansiosa década, con/vida-nos mesmo a repensar e a refazer.
Pergunto ainda, mais a quem faz disso vida e a quem pode responder, quando é que sabemos demasiado? Precisamos de muito mais do que descrever corretamente a realidade ou de capturar instantaneamente tantas emoções coletivas e (certamente) pessoais, formatando-as em horizontes enquadrados pelo que vemos e não vemos, encaixando-os em gavetas, ecrãs e janelas com ângulos simétricos e linhas retas. Que saber se impõe agora? Que espaços da experiência e que horizontes de expectativa? E o que fazer quando não se quer saber?
Este tempo que é liminar, em que se suspendem ou transformam convenções de modo provisório pela força da normalidade, que é invadido por ondas e por mundos aos quadradinhos, traz consigo também muitos excessos e prevenções distintas. Acarreta, obviamente, determinadas imposições legítimas sobre esta realidade turbulenta e insegura. Nesta fase, tão inesperadamente inédita, a relação contingente e complementar entre o(s) interdito(s) e a transgressão – esse facto social que produz tantas alteridades e que tem dimensões temporais, estruturais e espaciais – reconfigura-se, revelando, reforçando e reconstruindo processos sociais dinâmicos e complexos. Precisamos dessa alternativa complementar, de olhar para a “construção social” e desconstruí-la de modo a ser reconstruída para quem faz parte (e no seu todo).
Afetando tudo e todas as pessoas – de maneiras obviamente muito diferentes – há as normalidades que queremos e também há as que devemos proteger. Para mim aflige-me, profundamente, o facto de sermos seres gregários e interdependentes e de estarmos a cultivar e a promover – ativamente – distâncias!
Não me refiro aos cuidados com a saúde, mas sim ao isolamento. Este conselho e necessidade, há tanto tempo promovido pelo domínio psi-, será certamente saudável. Os estilos de vida do século XXI impõem uma necessidade do tempo e do espaço pessoal e privado. Mas desde que tenhamos “escolha” e que essa seja provisória, opcional. Haverá realmente uma distância suficiente do “Outro” generalizado ou do “outro” fantasmagórico, particular, idealizado? Quando é que nos aproximamos? E como? Quanto desta distância e distinção estamos a promover quando impomos a nossa janela, quando o olhar é de dentro para fora? Quando é que vamos saber demais? Ou não queremos mesmo saber? Quando é que passa a estranhamento?
Podemos, e deveríamos a meu ver, (voltar a) repensar nas relações sociais como pontes. No coletivo como desejável, na vontade do diálogo ou somente na importância do dialógico. Viver socialmente sem ecos ou nojos. Só cuidar de nós, de outros. Caso contrário, o que resta deste limbo provisório, aceite e passível de ser imposto e repetido, manobrado ou superado? Iremos viver disciplinados com temor do(s) outro(s) e desse grande “Outro”? Responsabilizar coletivamente quem transgride e quem não pode cumprir com imperativos categóricos, quem não terá acesso ao mínimo para viver, quem só sobre-vive? Ou então protegermo-nos disso, porque a vida assim até se vive melhor e só precisamos de identificar essas fragilidades “alheias”, já fazemos tanto! Solidariedade de sofá. Ou podemos, ainda, restringirmo-nos ao nosso pequeno mundo sem muita contaminação, aumentar a nossa imunidade. Ficar imunes. Viver.
Pensamos e conhecemos sobre a/s vida/s, mas não as podemos conter. Muito menos prever futuros ou garantir que se cumprem os nossos horizontes de expectativas e que protegemos espaços de boas experiências. Estes conhecimentos e saberes podiam, a meu ver, ocupar-se de cuidar e bio-grafar todos os espaços da experiência. Torná-los parte do coletivo, contribuir para o diálogo crítico e falar, mesmo a sério, a verdade ao poder (com responsabilidade e não para chegar a celebridade de ecrã ou construir reputação).
Para mim nunca foi tão necessária ou pertinente como agora a transgressão sociológica – seja como método de revelação da alternativa, instrumento (ou arma) desconstrutivo e crítico dos excessos normativos ou projeto de reconstrução da resistência. Queremos saber? Chegou a hora de nos importarmos com o que sabemos sobre-a(s)-vida(s) e como queremos realmente saber o que foi vivido e contado, sem medo de refazer o coletivo e de resistir ao impossível.
Sara Merlini concluiu o doutoramento em Sociologia (OpenSoc-Conhecimento para Sociedades Abertas e Inclusivas) no Instituto de Ciências Sociais (ICS-ULisboa) em 2019. É licenciada em Sociologia e mestre em Sociologia da Família, Educação e Política Social pelo ISCTE-IUL. Interessa-se por diferentes abordagens e, particularmente, pelos fenómenos da exclusão social, da transgressão e do género. É investigadora no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (ISCSP / ULisboa) desde 2020. Entre 2015 e 2020 foi bolseira de doutoramento e pós-doutoramento no Projeto TRANSRIGHTS, coordenado pela Doutora Sofia Aboim, com quem muito aprendeu. Antes disso, desde 2009 que tem vindo a contribuir para muitos projetos diferentes e marcantes
Como citar este artigo: Merlini, Sara (2020). “On life: quando é que sabemos demais?” Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2020/05/11 11 de maio (Acedido a xx/xx/xx)
A rubrica LIFE GOES ON pretende partilhar pequenas reflexões dos membros do Grupo de Investigação LIFE – Percursos de Vida, Desigualdades e Solidariedades: Práticas e Políticas, sobre a situação que hoje vivemos, provocada pela pandemia do COVID-19. Essas reflexões abordarão os seus impactes em vários planos da vida dos seus investigadores: no processo de pesquisa, no trabalho académico e na vida social.
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