Silvia Di Giuseppe é Doutoranda em Sociologia (OpenSoc) no ICS-ULisboa

Pretendo, na minha pesquisa de doutoramento, conhecer o quotidiano de mulheres na sociedade digital, numa comparação entre Portugal e Itália. Mais especificamente, o meu interesse é orientado, por um lado, para as representações e os significados que as mulheres atribuem às tecnologias digitais de informação e comunicação (TIC), e, por outro, para as práticas, ou seja, as modalidades de acesso e uso nos diferentes contextos do seu dia-a-dia (exercício da profissão, tarefas domésticas e atividade de entretenimento). Entendemos por TIC os equipamentos digitais (ex. computador, smartphone, tablet), mas também as redes de informação e comunicação (ex. emails, Facebook, Youtube).
Um grande problema de interesse sociológico ainda é o da questão da conciliação família-trabalho: estatisticamente, prova-se que é sobre as mulheres que recai o grosso dessa conciliação, apesar de alguns avanços masculinos na esfera doméstica; o que se traduz numa desigualdade de oportunidades de sucesso e progresso profissional e salarial. Outro fenômeno a assinalar é a massificação das tecnologias digitais de informação e comunicação nas diversas esferas de atividade quotidiana. Não podemos subestimar a importância da relação entre media, novos media, vida pública e vida privada (Baym, 2010; Papacharissi, 2010; Monteiro e Policarpo 2011; Aboim, 2011; Almeida 2011). As TIC estão em constante mudança (os novos devices de hoje ficarão obsoletos amanhã), criam conexões cada vez mais intensas entre o espaço público e privado e na relação entre atividades on-line e off-line (Almeida, Alves, Delicado e Carvalho, 2014).
No cenário da conciliação família-trabalho (onde as TIC são mais ou menos presentes e importantes), pretendo observar a importância das TIC para as mulheres nos seus quotidianos e rotinas: no trabalho profissional, nas tarefas domésticas (divididas ou não com os seus parceiros), nos cuidados aos filhos, no lazer pessoal e familiar. No ambiente doméstico vemos, por exemplo, que essas ferramentas são cada vez mais utilizadas pelos membros da família. Há, portanto, uma espécie de negociação para o uso das TIC entre os casal e pais e filhos – já foi destacada a importância da negociação na vida conjugal e na parentalidade contemporâneas (Marinho, 2011; Cunha e Marinho, 2018).
Pretendo averiguar, portanto, como as TIC se integram e redefinem o quotidiano feminino e considero que é de sociologicamente relevante ampliar a perspectiva de conciliação família-trabalho à luz das mudanças da sociedade digital.
Segui uma metodologia qualitativa e realizei 44 entrevistas semi-estruturadas a mulheres portuguesas e italianas. Em particular, a amostra é composta por mulheres activas residentes na área metropolitana de Lisboa e Roma, entre 25 e 49 anos, de diferentes profissões e níveis de escolaridade, que vivem em conjugalidade e com filhos. Entre outras questões, o meu primeiro objetivo foi observar e interpretar o impacto das TIC nas atividades quotidianas destas mulheres, quer ao nível laboral, quer no espaço doméstico, nomeadamentenas suas relações familiares.
Para tal, comecei por dividir as entrevistadas em dois grupos distintos com base na profissão e no nível de escolaridade: mulheres licenciadas com profissões mais liberais e científicas (empregadas técnicas e especialistas), e mulheres não licenciadas que trabalham sobretudo no sector dos serviços pessoais e comerciais, em contacto com o público ou em empresas (empregadas de serviços pessoais, comércio e escritório).
Basicamente, segui quatro hipóteses: i) as desigualdades sociais são reduzidas em termos de acesso à tecnologia, mas persistem as diferenças nas práticas e representações; ii) o modo de uso das tecnologias digitais varia de acordo com a especialização/qualificação, uma vez que diferentes trabalhos envolvem diferentes relações com as TIC; iii) o modo como as TIC são usadas influencia os posicionamentos em termos de pontos de vista pessoais em relação às TIC; por último, iv) as TIC têm um peso mais ou menos marcado nas relações familiares.
A observação dos resultados preliminares permitiu verificar que, de facto, existem diferenças expressivas por tipo de profissão, na medida em que há profissões que exigem um maior ou menor nível de literacia digital. Assim, de acordo com as tarefas associadas a cada profissão, há um uso diferente das TIC no contexto de trabalho.

O computador é a ferramenta que muitas das entrevistadas possuem e usam no ambiente de trabalho. No grupo das empregadas técnicas o computador e o smartphone são usados em simultâneo para a consulta de e-mails e sites, o uso de bases de dados e programas de computador. Os media são usados também para fins de trabalho, como o WhatsApp e o Skype. No grupo das empregadas de comércio, o uso do computador é mais limitado, varia entre ser fundamental, servir de complemento às tarefas principais ou ser praticamente inexistente. Aqui também o computador é usado para a consulta de emails e programas de computador (ex. o Office).
O smartphone é a ferramenta que todas as entrevistadas mais utilizam no espaço doméstico desde simples conversas com familiares e amigos à consulta de aplicações como o Whatsapp, o Facebook, a Amazon, o Youtube, os Jogos. Em alguns dos casos, as empregadas técnicas acedem às TIC em casa também para trabalhar, enquanto as empregadas de comércio as usam para comunicar com familiares e amigos (ex. para saber como estão) no auxílio às tarefas escolares dos filhos ou ainda para entreter as crianças com os jogos. O uso do Facebook é praticamente semelhante, mas enquanto as empregadas técnicas visualizam mais as notificações e partilham posts, as empregadas de comércio colocam mais fotos e gostos e fazem comentários nas publicações.

O uso do smartphone é muito comum também no tempo livre para comunicar e marcar encontros com familiares e amigos, procurar eventos para os seus filhos (Facebook) e visualizar vídeos de música e receitas (Youtube). Em relação ao tempo livre gasto em casa, às vezes também é usado para trabalhar no grupo das empregadas técnicas, enquanto as empregadas de comércio fazem mais compras online ou verificam ainda as diferenças de preços na Internet.

Tomando agora em consideração as representações sobre os usos das TIC, as empregadas técnicas confirmam que as TIC alteram de forma positiva a maneira como exercem a sua actividade profissional. Em geral, melhoram a qualidade do trabalho, o qual passou a ser mais rápido e imediato. As empregadas de comércio, por um lado, concordam com esta tendência, por outro lado, não notaram qualquer mudança.
Relativamente ao espaço doméstico, as entrevistadas concordam que as TIC são úteis para ter acesso imediato a qualquer contacto ou informação e que as pessoas, com elas, são mais independentes. As TIC são sobretudo úteis na pesquisa de informações escolares para ajudar os filhos. Em termos de alterações negativas em casa por parte das TIC, o traço comum observado é que estas condicionam as relações sociais na família porque a interação entre os membros passou a ser mais reduzida. As empregadas técnicas argumentam que o trabalho pode sempre tornar-se parte das atividades quotidianas, mesmo no tempo livre, e nesse sentido as TIC facilitam essa dinâmica. O problema colocado pelas empregadas de comércio é que, devido às TIC, a comunicação na família torna-se bastante mais reduzida, enquanto as crianças tendem a ser hoje em dia mais preguiçosas porque os jogos virtuais não estimulam muito a sua imaginação.
Em termos das alterações no tempo e práticas lazer, e num sentido positivo, as empregadas técnicas argumentam que as TIC são úteis para organizar o tempo livre nas viagens (reservas de hoteis, escolha de lugares para visitar), enquanto as empregadas de comércio valorizam o entretenimento (pessoal e das crianças), bem como a partilha de experiências com familiares e amigos. Num sentido negativo, as empregadas técnicas entendem que, às vezes, as pessoas são forçadas a trabalhar mesmo no seu tempo livre, e que as TIC facilitam este processo porque o indivíduo está sempre contactável, ao passo que as empregadas de comércio argumentam que as TIC tendem a isolar os familiares e que, em muitos casos, podem criar desentendimentos.
Em conclusão, as diferenças entre os dois grupos de mulheres estão marcadas por posições e motivações muito distintas em relação às TIC, em particular na maneira como as TIC são usadas nas mais variadas esferas de actividade. Talvez dizer que as profissões, muito mais do que a nacionalidade, moldam estas práticas. Observou-se, de facto, por um lado que, de acordo com o tipo de profissão, há uma procura maior ou menor pelo uso de TIC. Por exemplo, uma investigadora usará o computador de forma muito mais intensiva e diversificada do que uma empregada numa loja de electrodomésticos.
Por outro lado, notou-se que, às vezes, o uso de TIC no trabalho pode, em certos casos, vir a influenciar o seu uso em outros contextos, como o doméstico e o lazer. É por exemplo o caso de entrevistadas que em contexto laboral usam os e-mails para comunicarem com os empregadores, clientes ou colegas, e por vezes, com os seus próprios parceiros ou com a escola dos filhos, ou que quando se encontram no espaço doméstico também fazem uso dos emails para fins de trabalho. Portanto, não se excluí a existência de outros factores influentes, mas, por agora, considera-se que o modo de usar as TIC no trabalho também se pode reflectir em outras esferas de actividades quotidianas.

Como citar este artigo: Di Giuseppe, Silvia (2019). As TIC nas actividades quotidianas e o seu peso nas relações familiares: comparação entre mulheres portuguesas e italianas. Life Research Group Blog, ICS Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2019/06/11 11 de Junho de 2019 (Acedido a xx/xx/xx)
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