
Joana Mendonça & Ana Patrícia Hilário – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
“Epidemia de sarampo em 2017 teve dois surtos coincidentes” – Trata-se do título de uma notícia do jornal Público datada de 13 de janeiro de 2018, referindo-se aos surtos de sarampo ocorridos em duas localidades do país – Lisboa e Algarve – e dos quais resultou uma morte e cerca de 29 infetados. Apesar de Portugal apresentar uma das taxas mais elevadas de vacinação infantil da Europa (≥95%)1, estes dados alertam para o crescimento progressivo de grupos anti-vacinação no país, a par da tendência global. A Organização Mundial da Saúde alerta para os perigos inerentes à hesitação vacinal, considerando-a uma das 10 maiores ameaças à saúde pública na medida em que coloca em causa a imunidade de grupo contra doenças outrora consideradas erradicadas2 .
É neste contexto que surge o projeto “VAX.TRUST – Addressing vaccine hesitancy in Europe”, o qual é financiado pela Comissão Europeia (Grant Agreement Nº 965289) e está a ser desenvolvido em 7 países europeus: Bélgica, Itália, Finlândia, Portugal, Reino Unido, República Checa e Polónia. Este projeto tem como principal objetivo uma compreensão mais aprofundada do fenómeno da hesitação vacinal, isto é, da recusa ou adiamento de vacinas por parte dos pais. A hesitação vacinal é um fenómeno complexo que requer um conhecimento profundo acerca dos pais hesitantes, dos seus valores e motivos subjacentes ao adiamento ou recusa da vacinação dos seus filhos. É importante compreender: i) quem são estes pais?; ii) quais as suas práticas na gestão da saúde dos seus filhos?; iii) como promovem a saúde das crianças e as tratam em caso de doença? Com o objetivo de responder a estas questões, foram realizadas 31 entrevistas a pais hesitantes em Portugal os quais cumpriam, cumulativamente, 2 critérios de elegibilidade: ter pelo menos um filho com idade igual ou inferior a 6 anos; e já ter adiado ou recusado pelo menos uma vacina.
Os resultados obtidos demonstram que os pais hesitantes tendem a adotar um estilo de vida ‘alternativo’ caracterizado por práticas naturalistas na gestão da saúde dos seus filhos. Exemplos destas práticas são a preferência pelo parto natural e humanizado, o uso de medicina personalizada e com base em componentes naturais ao invés de medicamentos, a amamentação prolongada e em livre demanda, a dieta vegetariana ou macrobiótica, a preferência por modelos de educação alternativos (por exemplo, Montessori ou Waldorf), o adiamento da entrada na escola e a preferência pelo ensino doméstico. Com base na adoção conjunta destas práticas, os pais procuram promover o sistema imunitário dos seus filhos com base “naquilo que a natureza oferece” e tornando assim a vacinação algo menos necessário ou até mesmo dispensável.
Estes resultados vão ao encontro da ideologia de uma ‘parentalidade intensiva natural’ cuja premissa fundamental é a singularidade de cada criança e a subsequente necessidade de prestação de cuidados de saúde de forma ‘integrada e personalizada’. Esta posição leva os pais a questionar frequentemente a medicina ocidental atual, percecionada como sendo altamente massificada e pouco sensitiva às características e necessidades individuais de cada criança. À luz dos pais hesitantes, o esquema único de vacinação vigente em cada país reflete esta estandardização dos cuidados de saúde, sendo amplamente criticado e impulsionando os pais a decidirem de forma individualizada acerca daquelas que consideram ser as melhores práticas de vacinação para cada um dos filhos.
Os resultados deste estudo permitiram, pela primeira vez, estabelecer a ligação entre a hesitação vacinal e a ideologia da parentalidade intensiva natural em Portugal. Esta informação poderá ter especial relevância na personalização da comunicação acerca da vacinação infantil dirigida aos pais hesitantes.
Com o propósito de sensibilizar os profissionais de saúde para uma melhoria na sua interação com estes pais e degolar alguns dos estereótipos subjacentes aos pais que optam por adiar ou recusar as vacinas dos seus filhos, têm vindo a ser desenvolvidas várias intervenções com os profissionais de saúde. De facto, vários estudos têm sublinhado que a polarização dos discursos anti-vacinação leva a uma discriminação e estigmatização quer destes pais, quer das crianças, sendo um promotor de desigualdade social. A reflexividade social surge como ferramenta necessária para a desconstrução de estereótipos em torno da hesitação vacinal. Com este intuito elaborámos no projeto, em parceria com uma ilustradora e uma designer, um livro onde disseminamos os resultados de forma leve e divertida e, ao mesmo tempo, propomos um novo modelo de comunicação a adotar por parte dos profissionais de saúde. Este novo modelo de comunicação tem por base um estilo motivacional e surge em contraponto ao modelo paternalista de comunicação dominante entre a grande maioria dos profissionais de saúde. Acreditamos que o desenvolvimento de uma comunicação centrada na família irá permitir aos pais e aos profissionais de saúde criarem pontes entre si que visem a promoção do bem-estar e a saúde das crianças.


Figura 1. Representação do modelo de comunicação paternalista3
Figura 2. Representação do modelo de comunicação baseado no estilo motivacional (centrado na família)3
Joana Mendonça é bolseira de pós-doutoramento no projeto “VAX.TRUST – Addressing vaccine hesitancy in Europe” financiado pela Comissão Europeia. Foi bolseira de investigação no projeto europeu “SIforAGE – Social Innovation for an active and healthy ageing” tendo igualmente colaborado na “Campanha Global de Combate ao Idadismo” promovida pela Organização Mundial da Saúde. Exerceu funções como professora assistente convidada no IPAM. Concluiu o doutoramento em Psicologia em 2020 no ISCTE com a tese intitulada “O que pensam as crianças acerca dos mais velhos? – Desenvolvimento do idadismo explícito e implícito ao longo da infância”. Os seus interesses de investigação focam-se nas áreas da saúde, envelhecimento, idadismo, preconceito e infância.
Ana Patrícia Hilário é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. É uma das coordenadoras nacionais do projeto VAX-TRUST – Addressing Vaccine Hesitancy in Europe. Foi co-coordenadora da secção de Sociologia da Saúde e da Doença da Associação Europeia de Sociologia. Doutorou-se em Sociologia na Royal Holloway- University of London em 2015.
1 https://www.sip-spp.pt/media/2mjprbfw/boletim-n4-pnv.pdf
2 https://www.who.int/news-room/spotlight/tem-threats-to-global-health-in-2019
3 Hilário, A. P. & Mendonça, J. (2023). Quando a hesitação vacinal bate à porta [Pocket book]. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Nota: Este projeto recebeu financiamento através do programa de pesquisa e inovação European Union’s Horizon 2020 com o Grant Agreement N.º 965280 (This project has received funding from the European Union’s Horizon 2020 research and innovation programme under Grant Agreement N.º 965280).
Como citar este artigo: Mendonça, J., & Hilário, A.P. (2023). “Hesitação vacinal: Desafios e oportunidades”. Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2023/04/20 20 abril de 2023 (Acedido a xx/xx/xx)